23 de out. de 2007

O USO DE CATECISMOS E CONFISSÕES REFORMADOS

Limites
Os credos evangélicos no que se refere à formulação doutrinária são relevantes. Depreciá-los “é uma negação prática da direção que no passado deu o Espírito Santo à Igreja”.[1] Em contrapartida, temos de entender — aliás, como sempre foi entendido pelos reformados — que os credos têm limite; eles são uma resposta do homem à Palavra de Deus e sumariam os artigos essenciais da fé cristã. Dessa forma, os credos pressupõem a fé, mas não a geram; esta é obra do Espírito Santo através da Palavra (Rm 10:17).
Os credos baseiam-se na Palavra, mas não são a Palavra — nem isso foi cogitado por seus formuladores; eles não podem substituir a Bíblia; somente ela gera vida pelo poder de Deus (1Pe 1:23; Tg 1:18). Para os reformados, os credos têm autoridade decorrente das Escrituras; seu valor não é intrínseco, mas extrínseco: eles são recebidos e cridos enquanto permanecem fiéis à Bíblia; assim, a autoridade deles é relativa. Para que então os credos, se temos a Bíblia? O Dr. A. A. Hodge (1823-1886) apresenta relevante observação:
Todos os que estudam a Bíblia fazem isso necessariamente no próprio processo de compreender e coordenar seu ensino; e pela linguagem de que os sérios estudantes da Bíblia se servem em suas orações e outros atos de culto, e na sua ordinária conversação religiosa, todos tornam manifesto que, de um ou outro modo, acharam nas Escrituras um sistema de fé tão completo como no caso de cada um deles lhe foi possível. Se os homens recusarem o auxílio oferecido pelas exposições de doutrinas elaboradas e definidas vagarosamente pela Igreja, cada um terá de elaborar o próprio credo, sem auxílio e confiando apenas na sua sabedoria. A questão real entre a Igreja e os impugnadores de credos humanos não é, como eles muitas vezes dizem, uma questão entre a Palavra de Deus e os credos dos homens, mas é questão entre a fé provada do corpo coletivo do povo de Deus e o juízo privado e a sabedoria não auxiliada do objetor individual.[2]
Os credos são somente aproximação e relativa exposição correta da verdade revelada. Eles podem ser modificados pelo progressivo conhecimento da Bíblia, que é infalível e inesgotável. Por isso, não devemos tomá-los como autoridade final para definir um ponto doutrinário: os limites da reflexão teológica estão na Palavra. Os credos não estabelecem o limite da fé, antes a norteiam. As Escrituras sempre serão mais ricas que qualquer pronunciamento eclesiástico, por mais bem elaborado e mais fiel que seja à Bíblia. A firmeza e vivacidade da teologia reformada estão justamente em basear seu sistema em todo o desígnio de Deus, submetendo-o ele, que fala através da sua Palavra. A Confissão de Westminster diz:
O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.[3]
Valor e importância
A idéia de credos desagrada a muitas pessoas, que os imaginam como empobrecimento espiritual ou amordaçamento do Espírito etc. Nessa perspectiva, a doutrina tem pouco valor; o que importa é a “vida cristã”. Daí as ênfases nas “experiências” — que, via de regra, pretendem convalidar a Palavra — ou num “evangelho” puramente ético-social. Todavia, ambos os comportamentos equivocados pecam por não compreender que a base da vida cristã autêntica é a sólida doutrina vivenciada (cf. 1Tm 4:16). Esse ponto foi salientado por D. M. Lloyd-Jones (1899-1981):
Toda a doutrina cristã visa levar, e foi destinada a levar a um bom resultado prático. [...] A doutrina visa levar-nos a Deus, e a isso foi destinada. Seu propósito é ser prática [...] a nossa vida cristã nunca será rica, se não conhecermos e não aprendermos a doutrina.[4]
Você não poderá ser santo se não conhecer bem a doutrina. Doutrina é a ligação direta que leva à santidade. É somente quando compreendemos estas verdades fundamentais que podemos atender ao apelo lógico para a conduta e o comportamento agradáveis a Deus.[5]
Os elementos a seguir atestam a importância e o valor dos credos:
1.
Facilitam a confissão pública de nossa fé.
2. Oferecem de forma abreviada o resultado de um processo cumulativo da história, reunindo as melhores contribuições de servos de Deus na compreensão da verdade. A ciência não é privilégio de um povo ou de um indivíduo. Todo cientista — usando a figura de João de Salisbury (c. 1110-1180) — equivale a um anão nos ombros de gigantes, valendo-se das contribuições dos predecessores, a fim de poder enxergar um pouco além deles. Podemos aplicar essa figura à teologia e à tradição, como o fez J. I. Packer: “A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão”.[6]
3. São uma exigência natural da própria unidade da Igreja, que exige acordo doutrinário (Ef 4:11-14; Fp 1:27; 1Co 1:10; Jd 3; Tt 3:10; Gl 1:8-9; 1Tm 6:3-5).
4. Visto que o cristianismo é um modo de vida fundamentado na doutrina, os credos oferecem uma base sintetizada para o ensino das doutrinas bíblicas, facilitando sua compreensão, a fim de que os cristãos sejam habilitados para a obra de Deus. Spener (1635-1705), luterano e “fundador” do “Pietismo” — que se opunha ao “escolasticismo protestante” —, insistia com os pastores em que ensinem às crianças e aos adultos, com as Escrituras, o Catecismo menor, de Lutero, visto ser fundamental para a sedimentação da fé.[7]
5. Preservam a doutrina bíblica das heresias surgidas no decorrer da história, revelando-se de grande utilidade, especialmente nas questões controvertidas, dando-nos uma exposição sistemática e norteadora a respeito do assunto.
6. No que se refere à compreensão bíblica, permitem distinguir nossas igrejas das demais.
7. Servem de elemento regulador do ensino ministrado na Igreja, bem como de seu governo, disciplina e liturgia. James Orr (1844- 1913), na obra-prima O progresso do dogma, disse: “.... A idade da Reforma se destacou por sua produtividade de credos. Faremos bem se não menosprezarmos o ganho que resulta para nós destas criações do espírito do século XVI. Cometeremos grave equívoco se, seguindo uma tendência prevalecente [1897], nos permitirmos crer que são curiosidades arqueológicas. Estes credos não são produtos ressecados como o pó, senão que surgiram de uma fé viva, e encerram verdades que nenhuma Igreja pode abandonar sem certo detrimento de sua própria vida. São produtos clássicos de uma época que se comprazia em formular credos, com o qual quero dizer, uma época que possuía uma fé que é capaz de definir-se de modo inteligente, e pela qual está disposta a sofrer se for necessário — e que, portanto, não pode por menos que expressar-se em formas que não tenham validade permanente — [...]. Estes credos se têm mantido erguidos como testemunhos, inclusive em período de decaimento, às grandes doutrinas sobre as quais foram estabelecidas as Igrejas; têm servido como baluartes contra os assaltos e a desintegração; têm formado um núcleo de reunião e reafirmação em tempos de avivamento; e talvez têm representado sempre com precisão substancial a fé viva da parte espiritual de seus membros...”. Os credos da Reforma dão, e praticamente pela primeira vez, uma exposição conjunta de todos os grandes artigos da doutrina cristã.
8. Servem de desafio para que continuemos a caminhada na preservação da doutrina e na aplicação das verdades bíblicas aos novos desafios de nossa geração, integrando-nos à nobre sucessão dos que amam a Deus e sua Palavra e que buscam entendê-la e aplicá-la, em submissão ao Espírito, à vida da Igreja. Uma tradição saudável tem compromisso com o passado na geração do futuro.[8] Portanto, “o conservadorismo criativo utiliza-se da tradição, não como autoridade final ou absoluta, mas como recurso importante colocado à nossa disposição pela providência de Deus, a fim de nos ajudar a entender o que a Escritura está nos dizendo sobre quem é Deus, quem somos nós, o que é o mundo ao nosso redor e o que fomos chamados para fazer aqui e agora”.[9]
O Antigo e o Novo Testamento usaram esse recurso para auxiliar os crentes na vida doutrinária e prática cristã, expressando também o que a Igreja cria. A teologia reformada honra a Bíblia e os credos da Igreja, enquanto estes permanecerem fiéis às Escrituras.
[1]BERKHOF, Louis. Introduccion a la Teologia Sistematica, p. 22. John STOTT arremata: “Desrespeitar a tradição e a teologia histórica é desrespeitar o Espírito Santo que tem ativamente iluminado a Igreja em todos os séculos” (A cruz de Cristo, p. 8).
[2]Esboços de Theologia, p. 99.
[3]Capítulo I, seção 10.
[4]As insondáveis riquezas de Cristo, p. 85-86.
[5]Idem, p. 254.
[6]“O conforto do conservadorismo”, em HORTON, Michael. Religião de poder, p. 235.
[7]Veja Ph. J. SPENER, Mudança para o futuro, p. 32-33, 57-58, 118.
[8]“A tradição é o sangue da teologia. Separada da tradição, a teologia é como uma flor cortada sem suas raízes e sem o solo, logo murcha na mão. Uma sã teologia nunca nasce de novo. Ao honrar a sã tradição, se assegura a continuidade teológica com o passado. Ao mesmo tempo, a tradição cria a possibilidade de abrir novas portas para o futuro. Como diz o provérbio: ‘A tradição é o prólogo do futuro.’ Por isso, toda dogmática que se preze como tal deve definir sua posição em uma ou outra tradição confessional” (Gordon J. SPYKMAN, Teologia reformacional, p. 5).
[9]J. I. PACKER, “O conforto do conservadorismo”, em HORTON, Michael. Religião de poder, p. 241.
Fonte: MAIA, Hermisten. Fundamentos da Teologia Reformada. São Paulo: Mundo Cristão, 2007. pp. 20-24.

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