14 de out. de 2007

AS BASES DA ECLESIOLOGIA

Eclesiologia é a modalidade da teologia que estuda os assuntos concernentes à igreja.
A igreja não é um clube ou um ajuntamento social (se fosse, a sociologia e o estudo da administração de empresas seriam suficientes para interpretá-la). Ela é uma realidade espiritual. Por isso, é preciso um referencial transcendental para explicá-la. Esse referencial, em sentido bíblico, é a cristologia (doutrina sobre a pessoa e a ação de Deus Filho, Jesus Cristo) e a pneumatologia (doutrina acerca da pessoa e da ação de Deus Espírito Santo).
Outro ponto importante é a metáfora da Igreja como Corpo de Cristo. A expressão não aparece nos evangelhos nem em Atos, mas em vários textos do apóstolo Paulo (Rm 12:5; Ef 1:22-23; 5:30; Cl 1:18,24 etc.). Ser o "Corpo de Cristo" no mundo não é apenas um privilégio, mas uma grande responsabilidade.
Mas, à luz das Escrituras, o que exatamente significa ser "Corpo de Cristo"? É o que veremos a seguir.
UNIDADE ORGÂNICA NA QUAL TODOS TÊM UMA FUNÇÃO
O ensino apostólico sobre o aspecto orgânico da igreja encontra-se em 1Coríntios 12:12ss. Com base no funcionamento dos membros e órgãos do corpo humano, Paulo ensina o ideal divino para a igreja: todos os cristãos devem trabalhar; individualmente, cada um tem uma função ou responsabilidade a cumprir. De maneira inovadora, ele afirma que não somos membros de qualquer corpo, mas do Corpo de Cristo (v. 27; cf. tb. Ef 4:12,15-16; 5:29b-30).
Nesse Corpo, não há membro mais importante que outro; nenhum é dispensável, nem mesmo os considerados mais fracos ou até mesmo desprezíveis (v. 14-22). Em Romanos 12:5, Paulo segue a mesma linha de raciocínio: as capacidades são diferentes, mas todas são importantes, porque são originadas na mesma fonte: Cristo. A diversidade produz inestimável riqueza e, como diz certa expressão contemporânea, "agrega valor" ao Corpo.
A Igreja precisa (re)descobrir isso com urgência. Onde não se enfatiza o ensino bíblico da Igreja como Corpo de Cristo, os cultos são transformados em shows, megaigrejas são valorizadas (nestas, é praticamente impossível o crescimento espiritual de todos os membros, bem como falta espaço para todos trabalharem) e apenas o carisma do líder é valorizado.
Contra essas tendências que seguem uma lógica mais mundana e secularizada que bíblica e espiritual, é preciso ressaltar com veemência o ensino da Igreja como organismo vivo, cujo cabeça é o Senhor Jesus, e não como organização mercantilista.
É fato que nem todos executam funções na igreja. Todavia, é inegável que cada membro tem um papel a desempenhar, visando ao bem-estar e à saúde do corpo de Cristo.
Alguns, mesmo sinceros na fé, se dizem incapacitados de cumprir tarefas na Igreja. Quem pensa assim precisa descobrir sua verdadeira capacidade. Como? Pelo serviço e não mediante testes psicotécnicos e preenchimento de formulários, como alguns especialistas em crescimento de igreja sugerem. Basta se envolver em um ministério ou uma atividade da igreja. Na ocupação que se sentir bem, será aquela, provavelmente, para que foi comissionado por Cristo. Quando todos trabalham, o Corpo desenvolve saúde, e aí então pode crescer de maneira integral. Conforme o pensamento de John Mackay:
Quando todos os "santos" tomam a sério a sua chamada à santidade, expressando no pensamento e na vida tudo quanto é implicado no pertencer-se a Jesus Cristo, verdadeiramente será edificada a Igreja, que é o Corpo de Cristo. Cada um dos membros estará de saúde perfeita e perfeitamente desempenhará a sua função especial. Então, sob a direção dos líderes por Cristo indicados, e pela congregação reconhecidos, para conduzirem a vida da Igreja, o Corpo, como um todo, funcionará harmoniosamente, em obediência a Cristo, e estará equipado para o serviço coletivo de Cristo. [1]
"A PLENITUDE DAQUELE QUE A TUDO ENCHE EM TODAS AS COISAS"
A expressão Corpo de Cristo também aparece em Efésios 1, mas seu emprego difere completamente de Romanos e 1Coríntios (e mesmo de Efésios 45). Em Romanos e 1Coríntios a ênfase incide sobre o aspecto comunitário da Igreja, mas em Efésios 1 parece que recai na perspectiva cósmica do Corpo de Cristo: "E [Deus] pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu [isto é, Cristo] à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em todas as coisas" (v. 22-23). Essa afirmação é de difícil compreensão (não é de admirar as diversas tentativas de interpretá-la). O biblista Luís Alonso Schökel aponta algumas:
a) A Igreja sujeito plenifica, completa Cristo, como o corpo completa a cabeça; Cristo plenifica tudo. b) A Igreja está cheia de Cristo, o qual [plenifica tudo]. c) A igreja está cheia daquele que Deus plenificou com sua plenitude (Jo 1,14.16; Cl 1,18-19). [2]
Não pretendemos oferecer uma explicação definitiva dessa passagem. Antes, indicamos pistas para a interpretação desse texto-chave para a compreensão do conceito bíblico de Corpo de Cristo.
O que está claro no texto é o senhorio de Jesus Cristo sobre toda e qualquer realidade, visível ou invisível, material ou espiritual, celeste ou terrestre, angélica ou demoníaca, boa ou má. O Messias é apresentado como Senhor absoluto, acima de tudo e de todos, superior a toda e qualquer autoridade em cada área do universo. Ele é o cabeça tanto do cosmos como da igreja. Nas palavras do teólogo John Stott:
...aquele pois a quem Deus deu à igreja para ser seu cabeça, já era cabeça do universo. Logo, tanto o universo quanto a igreja têm em Jesus Cristo o mesmo cabeça. [3]
Ele também sugere que Efésios 1:23, ao associar o Corpo de Cristo com sua plenitude, faz "descrições sucessivas da igreja":
Estando estes dois quadros em aposição, é natural esperar que os dois ilustrem pelo menos uma verdade semelhante, a saber: o governo de Cristo sobre a sua igreja. A igreja é o seu corpo (ele a dirige); a igreja é sua plenitude (ele a enche). Além disso, os dois quadros ensinam o duplo domínio de Cristo sobre o universo e sobre a igreja. Se por um lado Deus deu Cristo à igreja como cabeça-sobre-todas-as-coisas (v. 22), por outro a igreja é enchida por Cristo que também enche todas as coisas (v. 23). [4]
A igreja, ao longo da história, tem sido perseguida e humilhada. Não obstante, sua honra é maior que se pode imaginar, maior que qualquer outra instituição na terra poderia dispor; afinal, a Igreja tem como cabeça aquele que é o cabeça do cosmos.
O ESPÍRITO E A IGREJA
Com a cristologia, a pneumatologia é base para a produção da teologia eclesiológica. A igreja é formada por seguidores de Jesus, que se submetem ao seu senhorio, e ninguém confessa a Jesus Cristo como Senhor da sua vida a não ser pela ação do Espírito Santo (1Co 12:3). Por isso, a Igreja é uma comunidade pneumatológica.
Na teologia contemporânea, Jürgen Moltmann se destaca por sua reflexão sobre a igreja como comunidade pneumatológica:
A igreja como comunidade de pecadores justificados, a comunhão dos libertados por Cristo, que experimenta a salvação e vive em ação de graças, está a caminho de cumprir o significado da história de Cristo. Com seus olhos fixos em Cristo, [ela] vive no Espírito Santo e então é em si mesma o início e o desejo ardente do futuro da nova criação. [Ela] proclama a Cristo somente; mas o fato de a igreja proclamá-lo já é sinal de esperança [...] Na ceia do Senhor a igreja relembra a morte de Cristo e a faz presente, o que leva à vida, e esse fato é uma antecipação da paz por vir. A igreja confessa Jesus, o crucificado, como Senhor, mas o reino de Deus é antecipado nessa confissão [...] A comunidade e a comunhão de Cristo [com a] igreja acontecem "no Espírito Santo" [...] Como comunidade histórica de Cristo, por conseguinte, a igreja é a criação escatológica do Espírito. [5]
A ação do Espírito Santo como doador de dons espirituais (carismas) aos membros do Corpo de Cristo é especialmente apresentada em 1Coríntios 12. O dom espiritual é a capacitação para a realização de um ministério no Corpo. Essa ação tem objetivo duplo:
1. Promover a saúde do corpo - a saúde não está diretamente relacionada ao saldo bancário, nem depende dele, ou à imponência arquitetônica do templo onde a Igreja se reúne; está associada, sim, ao pleno exercício dos ministérios pelos membros, e só acontece quando os dons do Espírito são vivenciados.
2. Glorificar a Cristo, Senhor da Igreja - Cristo é glorificado quando seus seguidores vivenciam a experiência de ser igreja com base nos direcionamentos bíblicos. Uma das possibilidades está na prática dos dons do Espírito (cf. Jo 16:13-14a).
A igreja evangélica brasileira sofreu com muitas discussões e debates sobre o tema dos dons espirituais nos anos 1970 e parte da década de 1980. Era candente e intensa a discussão sobre que dons seriam os mais importantes, sobre a contemporaneidade ou a cessação de alguns dons e sobre temas relacionados. Evangélicos carismáticos ou pentecostais e evangélicos "tradicionais" acusavam-se mutuamente de incorreção teológica e de praticarem uma interpretação bíblica equivocada. Atualmente não se vê a mesma polêmica. A ascensão do neopentecostalismo a partir da década de 1990 deslocou o foco da discussão para a busca de bênçãos materiais, por influência da teologia da prosperidade. Pentecostais e carismáticos clássicos perderam muito de sua visibilidade.
A discussão teológica e o debate sobre métodos corretos de interpretação bíblica têm o seu lugar, caso objetivem orientar o povo de Deus na melhor maneira de seguir e servir a Jesus, e, evidentemente, desde que não promovam a glória de homens nem descambem para agressões desnecessárias. Muito mais importante é usar os dons do Espírito Santo para a edificação do corpo de Cristo, o serviço aos necessitados, a promoção da justiça e a glória do Senhor da igreja.
Uma reflexão sobre a pneumatologia como base para a eclesiologia não pode deixar de mencionar a ação do Espírito como motivador, incentivador e energizador da ação missionária da igreja. Ele é a fonte de poder para o testemunho dos seguidores de Jesus a respeito de seu Senhor (At 1:8). Além disso, o Espírito guia e orienta a igreja no exercício da missão (cf. At 13:1-3). A direção e a capacitação do Espírito são muito mais importantes que recursos financeiros ou tecnológicos.
Refletindo sobre essa questão, David Watson afirma:
O Espírito Santo nunca será preso ou encapsulado nas minúsculas categorias de nossa mente pequenina. Ele é o Espírito do Deus eterno, cuja preocupação primária consiste em que o povo de Deus se envolva com a tarefa da missão; e lamentavelmente essa preocupação ou iniciativa nem sempre será encontrada entre a liderança da igreja. Em seu lugar pode haver reprovação ou até mesmo oposição ao zelo missionário do Espírito. Não é de admirar que muito da motivação e dos métodos da evangelização de hoje deixem a desejar. Mas precisamos uma vez mais da perspectiva da igreja primitiva, que estava tão inflamada pelo Espírito da missão, que se regozijavam sempre que Cristo era proclamado (Fp 1:18). [6]
Notas:
[1]A ordem de Deus e a desordem do homem, p. 119.
[2]A Bíblia do Peregrino (comentário a Efésios 1:22-23).
[3]A mensagem de Efésios, p. 37.
[4]Idem, p. 41.
[5]The Church in the Power of the Spirit, p. 33.
[6]I Believe in the Church, p. 174.
Fonte: CALDAS, Carlos. Fundamentos da Teologia da Igreja. São Paulo:Mundo Cristão, 2007. pp.14-20.

2 comentários:

Anônimo disse...

Abençoada seja a vida daqueles que se dispõem ao estudo da Palavra e são capazes de exegeses tão profundas e esclarecedoras.

Anônimo disse...

Em meio ao costume de passar por uma banca de examinadores, os futuros candidatos ao cargo de pastor batista, devem visitar esse precioso estudo. Graça e Paz!

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